"O Sr. D. Manuel pede que apressem o jantar. O general Gorjão espera que lhe sirvam o café. Da minha carteira de repórter, de entre episódios, depoimentos, diálogos e recordações arranco para aqui as folhas soltas onde anotei, tão rapidamente como os ia recolhendo, os factos e sensações que se seguem".
A revolução começou, em Lisboa, no dia 2 de Outubro de 1910. No dia seguinte, o Rei D. Manuel II sentou-se à mesa, no Palácio de Belém, para receber o Presidente do Brasil. Pouco mais de 24 horas depois era proclamada a República, nos Paços do Concelho. O jornalista Santos Tavares acompanhou o banquete real para o jornal Primeiro de Janeiro. Um mês depois escreveu a reportagem onde contou tudo sobre o jantar – o último jantar oficial de um Rei em Portugal.
Além de D. Manuel II, o banquete juntou na mesma sala ainda o ministro da Guerra, o comandante da Divisão Militar de Lisboa, o ministro da Marinha, o comandante das guardas municipais e o comandante de Lanceiros 2. Basicamente, quase todas as altas chefias militares estavam a jantar salmão do rio Adour e faisões da Boémia ao lado do Rei, enquanto cerca de dois mil soldados e marinheiros se revoltavam na capital.
Apesar de ter uma guarda de honra à porta do palácio, D. Manuel II entrou por uma das portas laterais. À sua espera, estavam, além dos convidados, um menu de luxo pomposamente distribuído em francês:
- Consommé double Royal
- Crême brésilienne
- Saumon de l'Adour à l'Ecossaise
- Escalopes de ris de veau Francillou
- Cuissot de chevrenil Moscovite
- Purés de Marrons
- Suprème de poularde Amélie
- Marquise au Porto
- Faisans de Bohème sur canapé
- Coeurs de Romaine
- Asperges d'Argenteuil-Sauce Aurore
- Corbeilles de fruits glacés
- Gateaux São Paulo
- Panter de friandises
- Desserts
Para lá do menu francês, como exigia a mais distinta nobreza da época, a acompanhar o jantar foram servidos oito vinhos diferentes, entre os quais um único português, um Vinho do Porto de 1815.
Segundo o jornalista, as sopas foram servidas "no meio de um silêncio denunciador". Foi nesse momento que um dos empregados alertou discretamente o ministro da Marinha de que tinha uma chamada à sua espera. Marnoco e Sousa saiu e não voltou a entrar.
Seguiu-se o salmão do rio Adour preparado à escocesa, os escalopes de vitela e a perna de veado moscovita com puré de castanhas. Um dos convidados perguntou o que se passava. A resposta desvalorizava a situação:
– Nada. Na Baixa, o povo tem-se manifestado contra as congregações religiosas.
Quando chegaram os supremos de frango, o Rei manteve-se pouco falador e com um "aspecto triste"; no momento de servir os canapés de faisão da Boémia, o comandante de Lanceiros 2 levantou-se e pegou no telefone para pedir que dois "esquadrões daquele regimento se dirijam ao palácio a fim de acompanharem o automóvel real no seu regresso às Necessidades".
Por volta das 21h20, o Rei D. Manuel II escreveu a seguinte mensagem na margem do cartão do menu: "Peço-lhe o favor de mandar apressar um pouco o jantar". Mal o empregado leu a mensagem, mandou que não se servissem os espargos. Vieram logo as taças de frutas cristalizadas, os bolos de São Paulo e as restantes sobremesas.
Os convidados passaram depois para uma sala ao lado onde foram servidos os cafés, licores e charutos. Foi nesse momento que o ministro da Guerra e o comandante de Lanceiros 2 aproveitaram para sair discretamente, um de cada vez. Mas um dos principais chefes militares manteve-se calmo e alheado até ao fim do banquete.
Quando o general Manuel Rafael Gorjão, comandante da 1.ª Divisão Militar, a qual incluía a guarnição militar de Lisboa, foi abordado pelo presidente do Conselho, sobressaltado com a revolta, limitou-se a comentar com um sorriso:
– Sempre hei-de ter tempo de tomar o meu café!...
Eram onze e meia da noite de 3 de Outubro. Trinta e três horas depois, a República era proclamada na varanda dos Paços do Concelho. Foi há 112 anos.
Uma óptima República para si onde quer que o menu francês do Rei esteja,
Ele
fotos: d.r.
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