Pode ter perdido algum do encanto do início, pode ter crescido demais, pode já não ter os pratos de barro, pode ter o chef quase sempre ausente, pode até ter uma esplanada onde se passa um frio de rachar nas noites de Inverno, mas O Frade continua a ser, sem margem para dúvidas, um dos sítios onde se come melhor em Lisboa.
É inegável que um restaurante que existe apenas à volta de um pequeno balcão, onde o chef e mais dois ou três cozinheiros preparam a comida para uma dúzia de clientes, tem um cuidado e uma atenção que um restaurante com uma sala, uma esplanada e uma rua cheia de clientes à espera, pode oferecer. Mas manter o Frade remetido a um balcão é o mesmo que manter a Mona Lisa num T0. Não só é egoísta como é insustentável.
Foi com esta noção – e com um blusão de penas e dois cachecóis – que voltei ao Frade neste Inverno. Esperei 20 minutos em pé na rua, apesar de ter marcado mesa, e ocupei esse tempo a tentar convencer a empregada a sentar-me na mesa mais próxima do aquecimento. Tive mais sorte do que a minha querida Mulher Mistério que, não só ficou a mais de três metros do aquecimento mais próximo (sim, eu sou mais sensível e preciso mais de calor...) como ficou de costas para o Presidente da República quando ele passou tranquilamente junto esplanada, a pé e de boné, no seu passeio nocturno.
O couvert
Neste momento Marcelo Rebelo de Sousa da noite, já nós tínhamos à nossa frente o simples e delicioso couvert do Frade (€5). Não tem espumas, reduções ou degustações, tem só os três mais básicos ingredientes de qualquer couvert: pão, manteiga e azeite. Acontece que aqui todos estes ingredientes são especiais.
O pão é o divinal pão do Isco: ligeiramente queimado e estupidamente estaladiço por fora, é consistente e saboroso por dentro. Feito com massa mãe, este é um pão que faz uma refeição. Em Fevereiro, já tive um susto quando me serviram uma "experiência que estamos a fazer" que basicamente era um pão mole e sem graça nenhuma, mas mais recentemente voltei a encontrar o maravilhoso pão do Isco.
A acompanhar, trazem aquela que é uma das minhas manteigas preferidas, a Rainha do Pico, dos Açores. No Frade, a manteiga é batida para ganhar volume e se tornar quase uma mousse (um truque que agora faço sempre em casa) e depois é misturada com um leve e equilibrado toque de alho e de ervas. Apenas com flor de sal espalhada por cima, também fica deliciosa.
Finalmente, o delicioso azeite alentejano vem com uns flocos de flor de sal do Algarve que o tornam igualmente óptimo.
Os petiscos
Tudo aqui é para dividir e quase tudo aqui é delicioso. Por isso o segredo é pedir a maior variedade possível e depois ser discretamente o primeiro da mesa a servir-se para tirar o mais que conseguir para dentro do seu prato. Eu sei que não me fica bem dizer estas coisas em público, mas um homem que é capaz de subornar uma empregada – ou quase – para ficar sentado ao lado do aquecimento é capaz de tudo.
Das várias vezes que lá fomos, aqui ficam aqueles que para mim são pratos obrigatórios. Eu sei que são muitos, mas acredite que valem a pena.
A papada de porco braseada (€9,50). Eu sei que o nome assusta, acredite que já fiquei rouco de tanto convencer as outras pessoas da mesa de que este prato é obrigatório, mas, por tudo quanto é mais sagrado, não hesite. Por nada. A papada está destinada. Trata-se de finíssimas, quase transparentes, fatias da entremeada dos músculos e da gordura do pescoço do porco.
Eu sei que a descrição é assustadora, mas acredite que eu detesto entremeada e adoro esta preciosidade. As fatias têm muita gordura, mas são tão fininhas que quase se derretem. Depois de curada, a papada é ainda braseada para queimar uma parte da gordura e vem para a mesa com um tempero de coentros e alho do outro planeta. É dos melhores e mais genuínos petiscos que já provei.
A muxama de atum com ovos (€13). É um dos mais tradicionais e antigos petiscos do Algarve. Com origem na passagem dos fenícios pela Península Ibérica, a muxama é conhecida como o presunto do mar, mas na verdade é um saboroso lombo de atum salgado para se manter conservado. Depois de cortado muito fininho, como o fazem no Frade, fica viciante. Aqui a muxama é servida por cima de uns deliciosos ovos mexidos cozinhados no ponto certo, com chalotas. Parecem uns tradicionais ovos mexidos com presunto, mas são uns surpreendentes ovos mexidos com muxama.
As empadas especiais (€3,80). Não são de galinha, não são de pato, nem sequer são de caça. São apenas divinais! Com uma fina massa no exterior, vêm levemente queimadas por fora e estupidamente suculentas por dentro. E isso deve-se ao recheio feito de bocheca de porco desfiada. No fundo, imagine o que seria colocar umas tentadoras bochechas de porco estufadas dentro de uma massa de empada crocante. Pois, eu calculei...
O escabeche de pato (€10,50). Eu sou suspeito para falar de escabeches porque adoro, sejam de perdiz, de coelho ou até mesmo de carapauzinhos. Este escabeche de pato vem muitíssimo equilibrado, sem vinagre a mais, e com uns imperdíveis grãos de mostarda em picle que fazem toda a diferença. Por cima, leva ainda uma gema de ovo braseada.
O tártaro de carne (€14,50). Já foi melhor, mas continua muito bom. Feito com carne maturada 180 dias cortada à faca até ficar em cubos pequeninos mas consistentes, leva uma mistura de acompanhamentos e temperos verdadeiramente deliciosa: picles de pepino, grãos de mostarda, rabanetes, óleo de salsa e ainda uma fenomenal maionese de alho negro e anchova. Para finalizar, uma gema de ovo braseada por cima. Tudo isto é misturado à sua frente no momento. Da última vez que lá fomos, o tártaro poderia ter vindo mais frio e não senti tanto os grãos de mostarda que fazem uma enorme diferença no resultado final.
O lingueirão (€14,50). Aqui temos uma pequeníssima divisão familiar. A minha querida Mulher Mistério embirra solenemente com lingueirão, eu embirro solenemente com quem embirra com lingueirão. É um dos poucos pontos fracturantes da nossa harmoniosa vida familiar. O lingueirão é dos mais gordos e carnudos moluscos e por isso consegue concentrar um sabor a mar bastante mais intenso do que as amêijoas ou as conquilhas. No Frade, além de ser um lingueirão quase anafado, vem com um cremoso e delicado molho à Bulhão Pato. Não é um prato único, mas é muito saboroso.
Os pratos principais
Se conseguir, vale sempre a pena deixar um pequeno lugar no estômago para um ou dois pratos principais a dividir por todos. Alguns são fixos na ementa, mas há sempre sugestões do dia.
O melhor prato que eu já provei no Frade e que, das três últimas vezes que lá fui não estava na ementa, foram as bochechas de porco com molho de morango. Eu sei que parece estranho, mas acredite que eu entranho. E voltaria a entranhar sempre que visse esta maravilha à minha frente. A combinação do morango doce e ácido com a bochecha gorda e suculenta é intergaláctico. As bochechas podem ser um prato enjoativo, mas com o doce de morango e uns picles ficou perfeito. Nunca tinha comido umas bochecas assim!
A corvina. Já comi em arroz de limão ou com xerém (19,80), o que eu prefiro. Tanto o arroz como o xerém vinham com um molho de limão que cortava na perfeição a gordura do peixe. A corvina vem em suculentos nacos e, num dos casos, trazia misturada um fabuloso lingueirão à Bulhão Pato que o cozinheiro perguntou se podia acrescentar.
As sobremesas
O leite creme de cabra (€5) é absolutamente obrigatório. Cremoso e suave, tem aquele toque mais denso e surpreendente do leite de cabra, que torna a sobremesa menos doce do que o habitual. Por cima, leva uma grossa crosta de caramelo queimado e bem estaladiço.
Se ainda tiver espaço, peça a mousse de chocolate (€5). Densa e com um forte sabor a chocolate, vem com umas avelãs tostadas e crocantes por cima.
O serviço
Já foi mais atencioso e mais preocupado com os clientes. Da última vez que lá fui, tivemos de esperar 20 minutos na rua até que a nossa mesa, previamente marcada, ficasse pronta. Para um jovem desportista como eu, não é nenhum drama, mas para uma pessoa já de idade como é a minha querida Mulher Mistério, é um suplício.
De resto, a comida chegou depressa e sem falhas.
O ambiente
Não é só pelo frio que vai sentir na esplanada nas noites de Inverno, mas também porque se se sentar no interior ficará num dos poucos lugares que existem no balcão à volta dos cozinheiros. E isso significa uma atenção especial que não tem preço. Além de o balcão ser bastante mais acolhedor e de até ter uns úteis ganchos para pendurar a carteira das senhoras.
Se optar pela esplanada, prepare-se para a escassez de aquecimentos exteriores. Da última vez que lá estive, havia apenas um aquecimento para cada uma das metades da esplanada e não era propriamente o aquecimento mais potente do planeta.
De resto, o ambiente é simpático e corre sempre o risco de se cruzar com o Presidente da República, a passear de boné pela rua, e voltar para casa com mais uma selfie no telemóvel.
O bom
O escabeche de pato, o tártaro de carne maturada, a muxama com ovos mexidos e o xerém de corvina com limão
O mau
A falta de mais aquecimentos na esplanada
O óptimo
A papada de porco braseada, as empadas, as bochechas de porco com molho de morango e o leite creme de cabra
Um óptimo jantar para si onde quer que Marcelo Rebelo de Sousa esteja com o seu boné,
Ele
fotos: o frade
Nota: Todas as despesas das visitas efetuadas pelo Casal Mistério a restaurantes, bares e hotéis são 100% suportadas pelo próprio Casal Mistério. Só assim é possível fazer uma crítica absolutamente isenta e imparcial.
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Calçada da Ajuda, 14 – 1300-598 Lisboa
De 3ª a domingo, das 12h30 às 15h e das 19h30 às 23h
T: 939 482 939
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